domingo, 4 de novembro de 2007

.Pudor.




Eu sou aquelas páginas que ela arrancou, os suspiros que ela abafou, o prazer que ela omitiu, a transgressão, a poesia escondida entre as cartas não entregues...Era pra eu ter sido a brincadeira de uma noite, a sobremesa de um casal, e, da garrafa de champagne, apenas a terceira taça.Depois tive que ser transformada num segredo,numa espécie de doença fatal.



Eu sou a pessoa pra quem ela ligava de madrugada, a quem ela visitava clandestinamente quando ele saía. Eu sou o motivo de todas as brigas que ela provocou. Eu sou a concessão dela aos apelos sexuais dele. E a tentativa de salvar uma relação falida. Mas me tornei um susto, um peso, o imprevisto pra quem tinha sua narrativa sob controle.



Eu sou aquele ponto e vírgula no lugar do ponto final de quem já tinha escrito o último capítulo do seu romance ideal.Ela nem imaginava que pudesse gostar tanto, ir além, sentir saudade quando estivesse sóbria.Eu sou as metáforas novas, a viagem inventada, os quinze dias na casa de serra sem dar notícias alegando que precisava escrever isolada do mundo.Eu sou o orgasmo mais intenso, a febre entre os lençóis,a dança dos travesseiros coloridos.Eu sou o café-da-manhã na cama, o banho de duas horas, o beijo de vinte e cinco minutos.Eu sou o poema que relata o encaixe dos nossos seios e o beijo de todos os nossos lábios. A história sobre meninas, sobre fadas e o violão encostado na lareira pra desocupar os braços pro abraço mais longo.



Eu sou as páginas que ela desistiu de publicar pra se proteger, se preservar.



Fui arrancada da história dela como essas páginas.Fui escondida entre juras de um falso amor que ela fazia a ele. Eu sou as tantas frases amassadas, descartadas da seleção dos capítulos.Mas sou a poesia escrita, tatuada no corpo. Sou a única digital que ela não conseguiu tirar no banho.


Eu sou essa emoção que ela rasgou da narrativa pra que os holofotes se voltassem todos pra sua história de amor mais convencional_eu seria a quebra da linearidade, a falta de estrutura do texto, o capítulo independente do resto do livro, aquele que sobreviveu sozinho.



Eu sou o silêncio deitado nos quartos,a cor do baton no retrovisor do carro.Eu sou o buquê de tulipas invadindo as tardes desavisadamente.Eu sou o final da espera, o amor de outras esferas.


Mas o que sei dele?Era um louco.Muito bem articulado, sedutor e completamente despudorado
e que tem feito eu perder noites de sono e me feito sonhar acordada por dias...